Nathacha Gabrielly, 12, perdeu o pai, Wesley Lacerda, 31, em 2021. Ela é uma das 170 mil crianças que ficaram órfãs para a Covid-19. Após a morte do pai, a menina passou a ter dificuldade de se enturmar no colégio, e só conversa com colegas que tomem a iniciativa. Em casa, fica a maior parte do tempo no quarto e se recusa a falar sobre a morte de Wesley, que era mecânico e motorista de aplicativo.
O número de órfãos nos dois primeiros anos da pandemia foi levantado pela pesquisa "Mortalidade por COVID-19 no Brasil, 2020-21: consequências do manejo inadequado da pandemia" produzida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 2022.
O Governo estuda a concessão de auxílio financeiro e suporte psicossocial para crianças e adolescentes órfãos da Covid-19. A iniciativa, que pretende estabelecer uma política pública para o drama da orfandade, também cogita em segundo momento expandir o auxílio para crianças e adolescentes órfãos de desastres naturais e crimes de feminicídio. Essa discussão mobiliza representantes dos Ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania, do Desenvolvimento e Assistência Social e do Ministério da Saúde, além de representantes da sociedade civil.
As entidades da Coalizão Orfandades, que atuam na defesa das crianças e jovens que enfrentam esse drama, esperam que as autoridades deem transparência ao processo de construção de uma política pública voltada para os órfãos.
— Queremos saber, entre outras questões, que ministério será o gestor do programa. Que contrapartidas serão oferecidas pelo governo? Até agora, só ouvimos falar. Não tivemos acesso a nenhum esboço - cobrou Elias de Sousa Oliveira, secretário de Assistência Social de Foz do Iguaçu e presidente do Conselho dos Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas).
Filha apegada
A mãe de Natacha já não era presente e a menina morava junto ao pai, a tia Tatiele Lacerda, 39, e a avó Ceres da Silva, 61. Na residência, em Alvorada, cidade gaúcha da Região Metropolitana de Porto Alegre, todos foram infectados com o vírus, mas apenas Wesley foi internado. Durante os 12 dias que ficou hospitalizado, tinha acesso ao celular e as conversas com Nathacha eram constantes. Quando ele morreu, a irmã, filha e mãe estavam no hospital.
— Ele foi entubado pela manhã e morreu na mesma noite. Nathacha era muito apegada a ele, dormia no braço dele e chamava-o de “tatata”. Quando o pai dela estava no hospital e precisou colocar fralda, ele mandou um vídeo para ela e brincou que agora era o bebe reborn. Eu, minha sobrinha e a minha mãe estávamos no hospital no dia que ele faleceu, ela queria entrar para vê-lo, mas não pode. Ela chegou a fazer consultas on-line com uma psicóloga, mas não se adaptou e eu não tinha como pagar para levá-la presencialmente — conta Tatiele.
A forma de transmitir a notícia sobre a morte, se não for clara e direta, pode acarretar em maiores consequências na saúde mental de quem é informado. Outra questão é quando a morte é totalmente ignorada, como conta a psicóloga colaboradora da Comissão Especial de Psicologia em Emergência e Desastre do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, Ariel Pontes.
— É muito comum falar que, por exemplo, a pessoa virou uma estrela ou que a pessoa foi viajar, mas a gente sempre bate na tecla que isso não pode. Quando fazemos essa analogia, a criança olha para o céu, vê uma estrela. Fala: "Ah, mamãe, papai me abandonou. Mamãe papai viajou e não volta mais, será que foi por minha causa?" Então tem muito essa questão da culpa que a criança desenvolve.
Crise de ansiedade com a perda
Bernardo, 7, perdeu o pai Leonardo Ribeiro, 47, há dois anos, dia 20 de abril de 2021, em decorrência da Covid, em Cabo Frio, município da Região dos Lagos do Rio de Janeiro. Sua mãe Flávia Ribeiro, 48, relata que nada foi escondido do filho. Leonardo sofria de insuficiência renal crônica e as visitas ao hospital já eram rotina antes da pandemia.
— Ele já estava acostumado com a ida e vinda do Léo do hospital por que ele fazia hemodiálise. Quando o pai foi internado com Covid, o Bernardo me escutava no telefone falando sobre o quadro de saúde do pai dele. Quando o Léo faleceu, eu praticamente não precisei dizer nada. Fui conversar com ele, ele me olhou e disse: "Mãe, o papai morreu, né?".
O Bernardo não apresentou problema de socialização, mas as crises de ansiedade se tornaram recorrentes.
— Ele começou a ter crises muito fortes de ansiedade, se jogava no chão, gritava e chorava ao mesmo tempo. O coraçãozinho dele parecia que ia sair pela boca. Ele pedia: "Mãe me ajuda, mãe me ajuda, eu não aguento mais sentir isso. Mãe, traz meu pai de volta". Passar por isso é uma gilete na alma. Ele não tinha e não tem problema na escola, nem com os amiguinhos, era só chegar em casa que tudo vinha. Ele voltava pra casa e era a válvula de escape dele para colocar para fora a tristeza e a raiva de não ter mais o pai aqui — conta Flávia.
No luto, os sintomas físicos
Os danos na saúde mental podem se transformar em consequências físicas. A ansiedade, por exemplo, pode se manifestar com sintomas diferentes, como palpitações, náuseas, falta de ar e dores de estômago, explica a psicóloga Ariel Pontes.
— Já é comprovado cientificamente que o luto pode provocar desequilíbrios químicos no cérebro. Os sintomas físicos mais comuns são a dor no peito, a sudorese, a tremedeira, a tontura, a fraqueza e a perda de apetite. Esses sintomas podem sim serem vistos como consequência do luto que a perda traz e eles devem ser vistos como reações normais no momento.
O luto também pode acarretar em retrocessos e quadros de agressividade segundo Ariel Pontes.
— A criança tem outra forma também de reagir a uma perda e é por meio de retrocessos. A criança volta a fazer xixi na cama, na roupa, quer jogar brinquedo. Se for uma criança que já passou dessa fase a gente consegue observar nela e no adolescente questões mais agressivas e de sociabilidade. Na pandemia você perde o contato com as pessoas, como vai ser quando voltar a ter? Muitas crianças nem chegaram a ter esse contato com o outro. Depois de um período só em casa com quem a criança e adolescente tem como base de segurança ficar longe é difícil, traz a ansiedade, o medo do que vai acontecer.
Medo de aglomeração
Suellen Figueiredo, 38, observa na filha Maria Isabel, 11 anos, o quadro de ataques de ansiedade após a morte do marido Roberto Nascimento, 42, no dia 12 de março de 2021, na cidade de Maricá, no Rio de Janeiro. Devido a dificuldade financeira, a menina precisou sair da rede privada e começou a frequentar uma escola municipal. Após a perda do pai, Maria Isabel não consegue ficar muito tempo em lugares com aglomeração. A menina tem asma e as crises de ansiedade agravam o quadro.
— Ela desenvolveu transtorno de ansiedade. Ela já tinha crises de asma que são tratadas desde que ela tem quatro anos, mas depois da Covid nunca mais fomos em ambientes com muita gente. Shows, festas de aniversário, a gente não vai porque ela não gosta, a socialização ficou muito difícil também. Quando ela vai em ambiente com muita gente começa a falar que tá com falta de ar e precisa fazer a bombinha, acalmar. Com a morte do pai ela perdeu parte da história dela — relata Suellen.
Lista de cuidados necessários aos órfãos, segundo Coalizão Nacional Orfandade e Direitos
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