Milton Alves Santos, coordenador executivo da Coalizão Orfandade de Direitos, disse em entrevista exclusiva que “para falar do cenário, temos que falar um pouco da própria condição, do próprio estatuto da orfandade no Brasil, que é considerada uma questão privada. Ela continua entendida como algo do mundo privado e então o principal desafio é ainda enfrentar o senso comum de que a orfandade cabe às famílias”, afirma coordenador executivo do grupo de instituições que busca criar uma política pública que legitime a questão da orfandade.
O coordenador da liga que busca atender essa demanda sensível e complexa de vulnerabilidade social, explica como a pauta é principalmente atendida pelo assistencialismo. “Quando ela sai do mundo privado, ela não vai para o mundo da política pública, ela vai para o mundo da comoção social, acontece a mobilização das pessoas em torno de uma ajuda mútua”, diz Milton Alves.
Em uma situação como a do Brasil, onde estima-se que mais de 40.839 menores de idade perderam o pai, a mãe ou ambos, a solidariedade social é importante, mas não deve ser a principal forma de auxílio. De acordo também com dados dos conselhos nacionais de Saúde (CNS) e de Direitos Humanos (CNDH), o número de crianças desprotegidas pode ser ainda maior quando consideramos as crianças e adolescentes criadas por avós e outras pessoas de referência.
Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990, essas crianças estão desprotegidas pelo Estado. O documento regulamenta no artigo 227 da Constituição Federal que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos e demandam proteção integral e prioritária por parte da família, sociedade e do Estado.
Em vista dessa situação, as autoridades de saúde e os governos devem trabalhar juntos para garantir que esses menores de idade tenham acesso a serviços de saúde mental, educação e bem-estar, além de medidas de proteção financeira e assistência social. Enquanto essa problemática for considerada fora da alçada governamental, faltam medidas de proteção para essas crianças que se encontram em um contexto de vulnerabilidade social.
Política públicas
Quando se fala na criação de políticas públicas que possam suprir as necessidades das crianças e adolescentes, a principal dificuldade é a mensurar a proposta orçamentária. “Não se tem uma base de dados que permita dizer quantas crianças ou famílias precisam desse benefício”, relata o coordenador da Coalizão da Orfandade.
Fernanda da Escóssia, jornalista e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, autora do livro "Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento", relaciona a problemática do seu livro com a situação. “O estado acaba punindo mais uma vez (a pessoa), porque por não ter registro não pode ter acesso a outros direitos”, afirma a jornalista.
Ações de assistência às crianças e adolescentes em situação de orfandade pela Covid-19 não deve ser vista como uma escolha, mas como uma responsabilidade da sociedade como um todo. A professora universitária complementa: “Não é o problema daquela criança ou daquela família, é um problema sobre qual o país precisa se debruçar e acionar instâncias de políticas públicas para resolver, porque não é um problema pessoal”.
João Paulo Soares, estudante bolsista PROUNI da PUC-Rio, perdeu o pai para a doença no início da pandemia e sente como um amparo governamental poderia ajudar. “Ele morreu quando ainda não tínhamos muita informação de quando e como isso tudo ia acabar. Dependíamos dele financeiramente, precisei deixar meu estágio e procurar um emprego que pagasse mais para ajudar em casa minha mãe e minha irmã pequena”, relata o estudante.
Morador da Vila Valqueire, João disse que a família é cadastrada no CRAS e recebe bolsa família, mas não receberam nenhum tipo de apoio social, mesmo com uma criança de 8 anos (irmã) na família. “Tive alguns meses de auxílio emergencial enquanto procurava emprego, mas até hoje a nossa vida não voltou a ser como era.” finaliza o estudante.
Situação da pauta no Brasil
Todos os óbitos no país são registrados pelos Cartórios de Registros de Pessoas Naturais e a falha no rastreio dos óbitos está na interlocução entre os órgãos governamentais e os cartórios. Com o cruzamento dos dados, é possível fazer a conexão entre as mortes causadas pela doença nos estados do Brasil com os dependentes desassistidos.
Renato Simões, Secretário Nacional de Participação Social da Presidência da República, alega que “seria necessário criar, a partir de iniciativas isoladas, uma normativa nacional para os cartórios, para que seja possível trabalhar na recomposição da base de dados da assistência social”.
De acordo com o Secretário, os órgãos responsáveis já trabalham em pesquisas, mas não têm dados publicados para a criação de ações eficazes. “Surgiu uma ajuda descentralizada e voluntarista, e o governo federal abriu mão de coordenar uma política eficiente”, relata Renato Simões.
Ações encabeçadas por outros Estados no país podem se tornar políticas públicas nacionais, mas antes é preciso entender a dimensão do problema, tanto regionalmente como nacionalmente, em números e em demandas específicas.
O Brasil possui um estudo nacional feito pela Arpen-Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais) a respeito dos órfãos de 0 a 6 anos em decorrência da covid, que resultou no número de 14 mil crianças. Desde 2015, crianças nascidas em território nacional possuem na certidão de nascimento o CPF dos pais, o que possibilitou o cruzamento dos dados das crianças com o responsável que morreu em decorrência da doença.
Para colocar uma política pública em prática, outros elementos também são importantes, como o processo de localização dos menores de idade e o enquadramento nos critérios para receber o benefício. “As limitações dos benefícios causam uma dificuldade na oferta, muitas vezes faltam órfãos que entram nos pré-requisitos e sobram benefícios, como aconteceu no Maranhão”, afirma Milton Santos, a respeito do Auxílio Cuidar, projeto do Estado do Maranhão que prevê auxílio financeiro para órfãos da Covid-19.
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