Sidney, de 16 anos, estava na escola quando as fortes chuvas começaram no centro de Petrópolis. Era fevereiro de 2022, e a cidade que anualmente sofre com os desastres causados pela água já estava em alerta, com medo do que poderia acontecer. O colégio não permitiu a saída dos alunos, para sua própria proteção, o que fez com que o menino não pudesse entender o que estava acontecendo até que fosse tarde demais. Ele perdeu pai, mãe e irmão mais velho e entrou para a estatística de órfãos, junto de seu irmão mais novo, de apenas 6 anos.
Sidney foi um entre as milhares de crianças que perderam a família e tudo que tinham ao mesmo tempo. Menores de idade que de uma só vez ficaram orfãos não só dos responsáveis, mas também da casa, vizinhos, amigos, bens materiais e toda referência de vida, devido a desastres causados por chuvas, enchentes e deslizamentos. Traumas que deixam cicatrizes imensuráveis no psicológico e tão grandes que podem durar para o resto da vida. Ainda mais de seres tão jovens, com a cabeça em formação.
Petrópolis, Brumadinho, Litoral norte de São Paulo. Todos os anos, mais crianças entram para a estatística de terem ficado desamparados, tendo que lidar com a perda da maneira mais bruta possível. A Associação Brasileira de Trauma (ABT) foi uma das instituições que buscou diminuir os impactos em um desses desastres. A psicóloga e psicoterapeuta Nélly Bodely tem 54 anos e trabalhou ao lado de outros 17 profissionais alinhados à organização na tragédia da região serrana do Rio, em maio de 2022. Segundo ela, o objetivo era oferecer apoio especializado ao psicológico das vítimas de classes baixas dos desastres de Petrópolis.
— São perdas irreparáveis. Essas pessoas ficam para sempre marcadas com a experiência do que é sentir tudo que envolve a perda de seus entes queridos. Não só o luto, mas também toda estrutura de moradia, família e modo de ser cuidado/criado, podendo envolver muitas mudanças drásticas e tão cedo na vida — foi o que Nélly pôde observar em suas consultas.
A psicóloga analisa que o maior risco é que esses jovens, por falta do acolhimento adequado, acabem ficando fixos em estados de choque, tristeza, raiva e profunda dor. O que leva a traços dissociativos, agressivos, de depressão ou ansiedade crônica.
Milena tinha 15 anos na época da tragédia. Com as chuvas incessantes, o rio encheu até transbordar e acabou causando a morte de sua mãe. Nas consultas com a equipe de Nélly, ela contou que sentia os dias passarem de maneira estranha desde a perda. “Muito rápido, mas lento”, foi a forma que a menina encontrou para descrever a sensação de não estar mais ali, e apenas vivenciar as semanas como se estivesse suspensa em um tempo distante.
O acolhimento após as perdas
No caso de Sidney e Milena, em Petrópolis, o trabalho psicológico foi feito com base na abordagem da experiência somática. Esse tipo de enfoque procura entender as sensações, além das emoções, imaginações, lembranças, pensamentos, crenças e comportamentos como meios de lidar e incentivar a autorregulação no sistema psicofisiológico. Nélly explica que o sistema de pessoas que sofrem traumas tão fortes precisa de experiências boas e de segurança, como contraponto. A partir delas é possível, aos poucos, mover ou liberar as emoções difíceis, e não ficar preso ao enorme impacto inicial, por mais que ele sempre deixe uma marca.
Alife Miguel era apenas um bebê de dois anos de idade quando teve a vida virada de cabeça para baixo. Ele perdeu pai, mãe, irmão, dois primos e a casa onde a família vivia no município de São Sebastião, no litoral do estado de São Paulo. As vítimas faziam parte de um grande grupo de parentes, imigrantes de São Pedro do Piauí, e todos foram afetados pelos deslizamentos causados pelas chuvas de fevereiro deste ano. Os que sobreviveram tiveram que retornar para seu estado, e Alife foi entregue à avó materna.
No caso de Alife, a família foi a principal base para acolher o órfão. Segundo Nélly, quando arranjos como o do menino acontecem, há uma boa perspectiva de amparo. Ela explica que mesmo envolvendo um lar diferente, ainda sim é um acolhimento afetivo, já que há uma relação prévia de afeto e segurança.
A tragédia de Brumadinho é outro caso triste que se encaixa na discussão. Com a queda da barragem da Vale, centenas de famílias perderam seus entes queridos, além de ficarem desamparadas com a perda de suas casas, bens materiais, vizinhos, e de tudo que havia na cidade. Foi necessário literalmente recomeçar do zero. Lucas Ragazzi é jornalista investigativo e acompanhou de perto o pós da tragédia na cidade mineira. O estudo resultou no livro: "Brumadinho - A engenharia de um crime".
O autor pôde ver pessoalmente a dimensão da dor. Segundo ele, em Brumadinho, a extensão das perdas é ainda maior, já que o deslizamento da barragem atingiu uma cidade pequena por inteiro. Por onde se anda se vê luto, “todos tem uma história sobre o dia do desastre e alguém que perdeu”. Ragazzi conta que as crianças convivem com esse luto e que essa conjuntura inevitavelmente afetará a formação delas ao longo da vida, por terem crescido em meio a essa nova realidade. Uma das vítimas que perdeu a família contou ao jornalista que era como se caísse uma barragem todos os dias, memórias que se repetem a cada passo na cidade.
O mais perigoso na visão de Ragazzi e também de Nélly é não ter a noção exata de quais serão esses impactos à longo prazo. O jornalista crê que muitos estudos e acompanhamentos terão que ser feitos, com foco para essa área, para se determinar ao certo o nível de influência no desenvolvimento psicológico de quem foi traumatizado. Afinal, há teses para entender o trauma da orfandade, e até talvez outras que abordem a perda de bens materiais e da vida por chuvas e deslizamentos. Porém pesquisas que possam unir os dois objetos de observação são raras.
Em todos os exemplos citados, a angústia é comum. Crianças que terão que amadurecer muito antes do que é natural, sendo forçadas de uma hora para outra a lidar com a perda, o medo, o luto, a insegurança e as dificuldades do recomeço - tudo de uma só vez. A busca dos que trabalharam nesses desastres é ajudar as vítimas a desenvolver resiliências, e evitar que essas dores sejam canalizadas em sentimentos ruins. Afinal, se tratando de menores de idade, essas cicatrizes poderiam significar impactos da raiva, ansiedade e tristeza profunda para vida toda. Nas palavras de Nélly: “a ferida criará cicatrizes, mas a vida ficará para sempre mudada.”
Mesmo que o projeto da ABT já tenha acabado, a terapeuta ainda busca acompanhar à distância os pacientes que atendeu. Sempre que pode ela entra em contato com os responsáveis ou com jovens para saberem como estão e os incentivarem a procurar mais sessões de terapia.“É um processo delicado”, segundo ela, já que é preciso respeitar o tempo e limite de cada um, oferecer sem impor esse tipo de demanda.
Perspectivas para o futuro
Apesar do pouco que se ouve acerca da problemática dos órfãos, há avanços em algumas frentes. O secretário da Secretaria Nacional de Participação Social da Presidência da República, Renato Simões, participa de uma iniciativa do governo que tem como objetivo ampliar o apoio às vítimas. A iniciativa tem o propósito de desenvolver um projeto de lei para oferecer auxílio para os cuidadores dos menores de 18 anos órfãos.
Além da ajuda financeira, a proposta também busca dar acesso a proteção integral incluído a saúde física e mental e promover o reconhecimento da orfandade como uma desproteção social de crianças e adolescentes, que envolve responsabilidade do Estado Brasileiro e sua inclusão no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Apesar de ainda não ter foco nas vítimas de chuvas e deslizamentos, todas as conjunturas de orfandade podem ser beneficiadas no futuro.
O coordenador da Coalizão Nacional Orfandade & Direitos da Criança, Milton Alves Santos, crê que o projeto de lei é um passo importante em direção à maior justiça social e assistência aos órfãos. Em especial, porque há leis que tocam no assunto atualmente, mas não de maneira adequada e inclusiva. “As leis não têm conseguido fazer os acompanhamentos psicossociais das vítimas e dos cuidadores. Elas são muito estritas, excessivamente focalizadas. Restritos para facilitar a questão monetária, mas dificultam a abordagem de alguns”, afirma Alves Santos.
Milton afirma que o modo que a problemática dos órfãos precisa ser vista de uma maneira diferente pelo Estado: "É preciso tirar a orfandade do assistencialismo". Pensar nessa questão para além de quando acontecem tragédia e muito menos como uma ajuda ou doação, e sim como direito social desses menores que foram lesados. Afinal, ainda nas palavras de Milton, como se pode ver como natural esses desastres, quando "a prefeitura não faz a manutenção das áreas de risco". Ou até quando empresas como a Vale agem de maneira irresponsável na gerência de barragens.
Em todos os casos estudados para a reportagem, o apoio popular foi essencial para tentar amenizar os impactos nas crianças atingidas. Ragazzi conta que em Brumadinho ele conheceu diversas assessorias técnicas, associações e grupos de pesquisadoras que se uniram para oferecer atendimento aos enlutados. Na visão deles, "Principalmente nas crianças, o acompanhamento de profissionais é muito importante". A conversa os ajuda a colocar para fora os sentimentos e se abstrair da pressão de estar em um bairro ou cidade afundada no luto.
No caso de Petrópolis, Nélly aponta que o Estado e a prefeitura vieram depois, a primeira a chegar foi a ajuda das pessoas, em abrigos, igrejas e escolas. Ela conta que "de início foram principalmente as organizações particulares, que se organizavam por psicólogos com as mesmas abordagens, pelas próprias ligações com a formação de onde vinham". Uma ponta de esperança de que as crianças que se tornaram órfãos não estão sozinhas e terão a ajuda necessária, em meio a tantas dificuldades, para recomeçar.
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