top of page
Foto do escritorLuzi Alves

Lei que garante auxílio à órfãos no Rio de Janeiro tem falhas



Maria Victória em UTI do hospital Clínica Cirúrgica Santa Bárbara, em Botafogo, em 2020. Imagem: arquivo pessoal

A pequena Maria Victória, de 2 anos, nunca sequer chegou a conhecer o colo da mãe. Gisele Costa dos Reis, de 37 anos, morreu em 14 de maio de 2020, dois dias após o nascimento da filha, em decorrência da Covid-19. Grávida de seis meses e com 70% dos pulmões comprometidos pela doença, Gisele foi submetida a uma cesariana de emergência, no hospital Clínica Cirúrgica Santa Bárbara, em Botafogo, para tentar salvar a vida da criança. Os médicos já afirmavam que havia poucas chances de ela sobreviver e realizar o sonho de ter uma menina. Prematura, Maria permaneceu por 45 dias na UTI e, hoje, é criada pela avó Maria do Socorro Costa, de 63 anos, a quem chama de mãe. Mas quando a avó pergunta de que barriga ela nasceu, responde com firmeza: “Gisele”.


Para Dona Socorro, Maria é a sua “razão de viver”. Auxiliar de serviços gerais, ela conta que precisou deixar o emprego para cuidar da neta, com quem mora sozinha em Vila Kosmos, Zona Norte do Rio de Janeiro. Agora aposentada, é responsável pela maioria dos gastos com a criança. O pai, Wellington Martins, que detém a guarda legal de Maria, recebe uma pensão de cerca de metade de um salário mínimo pela menina, mas, de acordo com Dona Socorro, Wellington nunca repassa para ela o valor de forma integral. A avó, no entanto, ressalta que investe o quanto for preciso pelo bem de Maria, e “pede a Jesus, todos os dias, que lhe dê muita saúde para cuidar dela até ficar independente, para que não sofra na mão dos outros”.


— Eu tive que aprender a viver sem a minha filha, e falo sempre o quanto Jesus é maravilhoso: deixou a Maria porque sabia que, se não fosse ela, eu nem estaria mais aqui — afirma.


Entre março de 2020 e abril de 2021, no Brasil, mais de 113 mil menores de idade perderam os pais para a Covid-19, de acordo com estimativa apontada no relatório “Denúncia de Violações dos Direitos à Vida e à Saúde no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil”, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Deste total, mais de 40 mil crianças ficaram órfãs de mãe, segundo levantamento da Fiocruz e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), publicado em 2022 pelo Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância). O mesmo estudo também indica que a Covid-19 foi responsável por um terço das mortes relacionadas a complicações no parto entre mulheres jovens.


Segundo o coordenador executivo da Coalizão Orfandade de Direitos, Milton Alves, é entendido como órfã toda criança que perde pai ou mãe, independente se um dos progenitores estiver vivo. Milton ressalta que o grande desafio da Coalizão é legitimar a proteção aos órfãos da pandemia, pois faltam políticas públicas que priorizem e ofereçam auxílio para esta questão.


— A orfandade no Brasil é considerada um fator privado, ela continua entendida como algo do mundo privado. O principal obstáculo ainda é enfrentar este senso comum de que o órfão é responsabilidade somente das famílias.



Dona Socorro com a filha Gisele Costa dos Reis. Imagem: arquivo pessoal

O pai da Maria Victória, antes casado com Gisele, hoje tem uma nova família, mas chegou a expressar o interesse pela criação da primeira filha, de acordo com Dona Socorro. A cada 15 dias, Wellington fica com a criança nos fins de semana.


Caçula de Dona Socorro, Gisele também era mãe do adolescente João Victor, de 15 anos. Diferente da irmã, João mora com o avô José Roberto Reis e a esposa Lídia Nobre, em Bonsucesso, Zona Norte do Rio. Ambos porteiros, o casal relata que precisou sair da casa própria e ir morar de aluguel para acomodar melhor o jovem. Apesar de o pai biológico de João ter aberto mão de sua guarda legal, o pai de Gisele conseguiu apenas a guarda provisória do menino, e ainda luta na justiça para que ele tenha acesso à pensão da mãe.


Segundo Lídia, por um tempo, Gisele e o filho chegaram a morar com eles e, mesmo após ela se mudar para uma casa próxima, João sempre ficou sob os cuidados do avô quando a mãe ia para o trabalho. Por isso, foi mais fácil para o adolescente permanecer com José Roberto. Mesmo criados separados, Lídia afirma que João tem uma relação bastante próxima com Maria Victória, mas que eles não se encontram com tanta frequência por conta da distância.


— Foi muito difícil no início, porque ele já não tinha sido acolhido pelo pai e, depois, perder a mãe, que era o ponto seguro dele, foi muito difícil. Após a morte da mãe, levamos ele para fazer um acompanhamento psicológico por mais de dois anos. Hoje, ele está bem tranquilo, mas sentimos que não é mais a mesma coisa. Às vezes, quando ele via notícias na TV de pessoas que se recuperaram da Covid-19, questionava, “por que minha mãe? Por que tem notícias que falam que as pessoas ficaram boas e a minha mãe não voltou?”. Em uma situação dessa, em que a mãe foi para o hospital e, de repente, ele só recebe a irmã de volta, é pesado até para um adulto.


Na foto Lídia Nobre, João Victor e José Roberto Reis com Maria Victória no colo. Imagem: arquivo pessoal

Nenhum dos avós obtêm qualquer tipo de auxílio do governo para cuidar das crianças. Dona Socorro relata que a ajuda que recebeu foi de doações de fraldas, utensílios de higiene de bebês e roupas para Maria Victória por meio de algumas amigas.


— A Maria ganhou muita coisa. Quando começou a tomar o leite Aptamil, teve uma médica que doou cerca de dez latas de leite. Até quase dois anos de idade, não foi preciso comprar quase nada para ela.


Conforme Milton explica, quando a questão da orfandade vai para o mundo privado, ela não entra no mundo das políticas públicas, “mas parte para o da comoção social, portanto, da mobilização das pessoas em torno de uma ajuda mútua, que obviamente é importante”.


— A orfandade cria nas famílias uma desorganização por uma tragédia que, natural ou não, é sempre um drama. O problema é que muitas não confiam no Estado quando se trata de temas como este, pois teme que o governo desestabilize e desorganize a família. Só que há situações de fragilidade social e de proteção que um benefício comunitário não vai conseguir resolver.


Falhas no subsídio do Estado


Em 2022, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou uma lei de garantia de auxílio emergencial do Programa Supera Rio a crianças que perderam um dos pais em decorrência da Covid-19 ou de desastres naturais. A lei 5.528/22, de autoria dos deputados Luiz Paulo (PSD) e Lucinha (PSDB), tem o objetivo de conceder R$200, com adicional de R$50 por filho menor, às famílias cadastradas. Segundo o deputado Luiz Paulo, “a dura realidade das crianças em situação de orfandade nas áreas mais pobres do Rio de Janeiro”, foi o grande parâmetro para que este auxílio fosse oferecido.


Para receber o auxílio, o beneficiário deve comprovar renda igual ou inferior a R$200, ou não ter nenhuma fonte de renda. Portanto, pessoas com situações como a de Dona Socorro não poderiam obter a ajuda. A aposentada, porém, diz que nunca ouviu falar desta extensão do programa. A última notícia divulgada pelo site da Alerj a respeito do assunto, foi em 22 de março de 2022, a qual notificava que o texto ainda dependia da aprovação do governador Cláudio Castro. O Supera Rio era válido até o fim de 2022, mas a deputada Renata Souza (PSol) conseguiu que ele fosse prorrogado até o dia 31 de dezembro deste ano, por meio da Lei 9.941/22. No site de cadastramento, porém, não há informação ou orientação relacionada ao auxílio para órfãos.


Escassez de recursos


Em casos como o da jovem desempregada Jéssica Roberta Souza da Cruz, de 26 anos, responsável por seis crianças, não existe nenhuma lei no Estado que lhe garanta auxílio. Mãe de três filhos, Jéssica se viu obrigada a assumir mais três sobrinhos, após a morte da cunhada Monique Suelen de Souza Benevente. Em 14 de julho de 2020, Monique morreu, aos 26 anos, por infecção sepse e deixou os filhos Luan Mateus, Lauany Marcelly e Laiza Manueli, na época com nove, sete e dois anos, respectivamente.


Na foto: Jéssica grávida da bebê Hadassa, hoje com três meses, ao lado dos seus filhos Roberth Luiz (camisa branca) e Laura (vestido colorido) com os filhos de Monique - Luan Mateus (camisa cinza), Lauany (de branco) e Laiza (blusa preta). Imagem: arquivo pessoal

O pai das crianças, Leonardo Souza da Cruz, vive com outra família e não pôde ficar com os filhos, mas, de acordo com a irmã, ele ajuda quando necessário. Quando passou a criar os sobrinhos, Jéssica já era mãe de duas crianças de seis e quatro anos e, hoje, tem mais uma bebê de quatro meses. Com tantos menores para sustentar, ela relata que fica difícil equilibrar as contas. Impossibilitada de trabalhar por causa dos pequenos, toda a renda que entra na casa é do marido de Jéssica, que é porteiro de supermercado, e da pensão da mãe dela, com quem sempre morou em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro.


— Às vezes eu tenho que privar os meus filhos de algumas coisas porque eu não posso dar para todos eles. Eu não vou comprar uma pizza só para os meus filhos, se eu comprar, vou ter que comprar para todo mundo. Eles fazem muitos pedidos, tênis, celular, chuteira, de tudo. Agora, todos querem uma bicicleta, mas não tem como atender o pedido de seis crianças. Então, a solução é comprar uma para que cada um possa andar um pouco. Tem que aprender a dividir — explica Jéssica.


Há quase três anos, Leonardo entrou com o pedido na justiça para receber o INSS de Monique, o qual os filhos têm direito, mas continua sem retorno. Jéssica recebe Bolsa Família pelos próprios filhos, mas não conseguiu incluir os sobrinhos ao programa.

Além dos problemas financeiros, Jéssica reitera que sente falta de um apoio psicológico para as crianças. A pequena Lauany, atualmente com 10 anos, é quem mais demonstra os traumas causados pela ausência da mãe. De acordo com a tia, Lauany se tornou muito frágil e apresenta características de Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). A menina ainda presenciou a avó materna cometer tentativa de suicídio. A mãe de Monique entrou em depressão após a perda da filha e, por isso, não teve condições de ficar com a guarda dos netos.


— São crianças muito carentes. Eles veem uma pessoa e dizem que gostariam que ela fosse a mãe deles. Teve um dia em que a Lauany estava na rua, e um menino começou a rir dela e falar que ela não tinha mãe. Ela começou a chorar. Eu falei com ela para não ligar para aquilo, pois tinha mais de uma mãe. A caçula também demorou a perceber que a mãe não ia voltar, e sempre que ia uma visita na nossa casa ela perguntava se a pessoa retornaria, pois guardava a lembrança da mãe que nunca voltou para casa. Eu acho que eles precisavam de um tratamento psicológico, até reclamei na Clínica da Família, mas ninguém me deu suporte ou informação sobre algum programa do governo — conta Jéssica.


Muito nova, Jéssica precisou abandonar o sonho de trabalhar como maquiadora para cuidar das crianças, e relata que, frequentemente, é questionada pelo marido sobre até quando vai manter a sua vida estagnada. “Isso não era uma responsabilidade minha”, afirma.

0 comentário

Yorumlar


bottom of page