As autoridades desconhecem o número de crianças que ficaram órfãs, no Brasil, em decorrência de casos de feminicídio. Uma das pesquisas que chegou mais perto desse drama foi feita, em 2020, pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro a partir da leitura de processos judiciais em trâmite nas Varas de Júri do Rio de Janeiro. O levantamento identificou 387 processos judiciais, nos últimos 20 anos, com denúncia de feminicídio atrelada à lei Maria da Penha. Nos registros oficiais não constam informações sobre a maternidade das vítimas. Apesar disso, 89% dos casos analisados mencionam que as mulheres tinham filhos, segundo relatos de testemunhas.
O secretário nacional de Participação Social da Presidência da República, Renato Simões, afirmou que crianças e adolescentes órfãos, seja de feminicídio ou outra causa, são invisíveis para os sistemas de registro brasileiros. A falta de dados consistentes sobre o grupo e o reconhecimento da gravidade da questão dificulta que haja reparação e proteção por meio do estado. Milton Santos, coordenador da Coalizão Orfandade, projeto que surgiu para lidar com o dilema emergencial trazido pela Covid-19, disse que há um crescimento no debate sobre a necessidade da criação de uma política de assistência a todos os órfãos.
Para Renato Simões, a falta de dados e números consistentes acomete todas as orfandades. – Hoje nós não temos um número oficial de crianças e adolescentes em situação de orfandade pela Covid, por exemplo. Temos estimativas que circunscrevem a um percentual da população brasileira, de acordo com padrões estatísticos mundiais –, pontuou.
— A orfandade nacional vem sendo observada e articulada por organizações da sociedade civil ligadas aos Direitos Humanos, que têm construído um conjunto de iniciativas municipais e estaduais – afirmou Milton. Para ele, o Governo Federal está mais sensível à pauta de reparação das decorrências da Covid-19, mas que a pauta da orfandade não cresceu sozinha em nenhum governo no Brasil. A inclinação política favorável do Poder Executivo permitiu um conjunto de manifestações públicas em torno da agenda protetiva aos órfãos – O estatuto da orfandade no Brasil deveria estar além do que as famílias podem oferecer, e essa busca é o foco da Coalizão – disse.
Assistência governamental à orfandade
O Estado do Maranhão foi pioneiro e criou uma política assistencial que garantiu uma mensalidade de R$500 aos órfãos pela Covid-19 até a maioridade. A ação impulsionou a criação de medidas em todo o país.
Milton Santos acredita que os projetos de lei que visam o assistencialismo são políticas importantes para retirar a proteção da orfandade por violência do campo do privado, mas que ainda existem pontas soltas – As políticas monetárias não vêm junto de garantias de proteção imaterial, como acompanhamento das famílias em que o feminicídio aconteceu, entender os impactos psicossociais nos cuidadores e nas crianças e adolescentes órfãos e garantir que a rede funcione – , afirmou.
No Rio de Janeiro, em âmbito municipal, o Projeto de Lei sancionado em janeiro, (nº7.763/2023) garante que a rede de apoio às crianças que perderam a mãe para a violência doméstica no raio do município, terão atendimento prioritário nos órgãos municipais encarregados do atendimento educacional, de saúde e de assistência social. A vereadora Monica Tereza Benicio (PSOL), co-autora do projeto criado pela vereadora Teresa Bergher, afirma que a lei é importante e se trata de uma demanda histórica do movimento feminista, mas a implementação depende da ação do Poder Executivo.
— É uma demanda importante diante dos impactos do feminicídio na vida das crianças e adolescentes, que muitas das vezes presenciam inúmeras violências e até o próprio feminicídio. – afirmou. – Esperamos [os autores] que a prefeitura do Rio demonstre o seu comprometimento no enfrentamento a violência contra as mulheres, assim como no acolhimento às mulheres em situação de violência e suas e seus dependentes. Esta é uma pauta urgente e que precisa do envolvimento de toda a sociedade –, disse a vereadora.
Sobre a distribuição adequada e controle do benefício, Monica Benicio acredita que a coleta de dados não seja difícil. – O Estado tem dados sobre as mulheres em situação de violências por meio dos atendimentos nas áreas de saúde, assistência social, segurança pública e nos próprios órgãos de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica –, afirmou.
O feminicídio no Rio de Janeiro
O sociólogo Ignacio Cano falou sobre o fenômeno do feminicídio no Estado do Rio de Janeiro e complementou a ideia sobre a falta de dados como uma questão central. Ele afirma que no Brasil, como muitos países da América Latina, o feminicídio foi um tipo penal criado para proteger as mulheres do que ele considera o ponto final da violência doméstica.
— Os casos de homicídio por questão de gênero, com a Lei (nº 13.104/2015), passam a ser classificados como feminicídio. Mas os números são elásticos. Depende dos critérios do Ministério Público, da Polícia e de caso a caso. Há orientações para que, no benefício da dúvida, se considere primeiramente feminicídio para só depois provar se é, ou não. São dados frágeis, mas que politicamente e simbolicamente têm um impacto importante – disse.
Segundo estatística do Instituto de Segurança Pública (ISP), a polícia registrou 57 feminicídios de janeiro a junho, mas os dados não mostram informações sobre órfãos deixados. O policial Daniel Rosa, ex-chefe da Delegacia de Homicídios da Capital, conta que nunca encontrou com filhos de vítimas de feminicídio em cenas de crime, a não ser em casos em que eles também foram vítimas fatais da violência de gênero, como no caso de Laís Khouri, que foi morta em 2016, na Barra da Tijuca, pelo marido Nabour de Oliveira Júnior que também jogou os dois filhos da vítima pela janela.
— A Polícia quando chega na cena do crime, a criança da mulher que faleceu já não está mais. Foi levada por alguém da família: a tia, avó, e assim por diante – contou o policial. Segundo ele, o Governo deve oferecer acompanhamento psicológico e social às famílias que cuidam das crianças órfãs de vítimas de feminicídio.
Комментарии